E de repente o amor!

O corpo, meio dolorido e ainda imerso numa imensa solidão, que tem tanto de bela como de disforme, encontra-se faminto.
Levanta-se, abre os sentidos ao tempo e começa a emergir. O sol desperta os poros, os poros os órgãos internos e é nesse repente louco que surge algo.
Os olhos levitam nas orbitas, não param na sua dança irreverente em busca de um alvo. O dia despertou claro, não existe, nem para um pouco de charme iluminista, uma nuvem pedante que por ali circule.
O corpo, escusado será dizer-se, é o meu corpo. É nele que eu sinto, que eu vejo, que eu vivo este mundo. Digo que vivo este mundo porque não tenho qualquer outra opção, não nos é oferecida qualquer outra opção. Para a vida temos somente isto, este sol, esta terra escura sob qual deambulamos, este ar espesso que por vezes é inexorável e nos dificulta o respirar.
Apesar das cartas do jogo serem sempre as mesmas, o mesmo “jogo viciado” como costumamos dizer para nos desculpabilizar-mos, temos inúmeras formas de jogar, de apostar e, se o caso for esse, formas das mais mirabolantes de ludibriar o jogo convencionado.
Assim sendo, vamos acordando, vivendo e deitando, sonhando e morrendo.
O corpo, esse, está sempre faminto, ou quer comida, ou aventura, ou sossego, ou paz, muitas são as vezes em que ele se subjuga e pede somente o mais simples, a tão merecida paz! Mas mesmo a paz não lhe basta, não o preenche o bastante, é necessária a fúria, a luxúria, a perfídia. O pecado (se eu me acreditasse em pecado) é muitas vezes ingerido pelo corpo, por este ter necessidade daquilo que não é permitido, no entanto (e é por isso que eu não acredito no pecado) mesmo isso que não é permitido o sacia, isso não lhe basta, o corpo pede mais e mais, até que no momento em que ele se sacia ele pede só uma e uma coisa, a morte! Aliás, para sermos francos, a única coisa que o corpo não pede, é a morte! A morte, o corpo exige-a!
E assim vamos sobrevivendo, sempre oferecendo novos alimentos ao corpo, para que ele não se lembre de exigir aquilo que é dele por direito, a tão inexorável morte!
Nesse repasto gigante que é a vida, vamos servindo as mais maravilhosas ceias, polvilhadas de requintados e excitantes sabores.
Vamo-nos deleitando com as entradas, aqueles momentos em que olhamos os nossos pais e não conseguimos senão encara-los como super-heróis, como Deuses, a bem dizer, os pais são os nossos guias espirituais durante uma imensa parte das nossas vidas, se tivermos em conta que o que demora um ano na infância, mais parecem décadas aos olhos da idade adulta. Prosseguimos então por essas maravilhosas entradas, vamos tendo um gostinho do que são as primeiras amizades, quando um amigo é realmente um amigo e por ele não conseguimos senão dar a nossa própria vida se alguém tentar intrometer-se na vida dele, aquele verdadeiro amigo a quem daríamos a ultima chiclete, sim, essa mesmo, essa que guardamos a manhã inteira de aulas para depois podermos ir até casa ao final das aulas sempre a mascar e a fazer balões! Isso sim são as amizades da nossa vida! Ainda nessas entradas, vamos tendo coisas que por vezes nos azedam o apetite, a primeira grande desilusão, quando o percebemos que o pai natal não percebeu bem aquilo que queríamos e durante dias ficamos com aquele aperto no estômago de nos faltar algo e parecer que não existe vida, se não tivermos aquela bicicleta com que sonhamos nos meses que antecederam o natal, sim, porque nessa altura, uma semana são longos meses!
Depois das entradas chega-nos o prato de peixe, sei que é um pouco estranho, mas o prato de peixe é aquele que mais nos pesa, aquele que mais nos marca, chegam-nos as primeiras grandes dúvidas nessa altura;
- Será que ela\e reparou na espinha enorme que tenho na testa?
- Será que ela\e fala sobre mim quando está com a\o melhor amiga\o?
- Qual será o momento certo para eu ir ter com ela\e e dizer-lhe que gostei muito da forma como ela\e gozou com a professora na aula e que foi muito fixe ela ter dito aquilo, e mais fixe ainda quando ela\e saiu da sala e bem antes disso mesmo fez aquele olhar de má\mau e bateu com a porta e… e… dizer-lhe que ela\e é mesmo linda\o e que eu não consigo tira-la\o da cabeça!
E nessa altura tudo nos parece vibrante e o que é mau é mesmo mau e o que é bom nunca é bom o suficiente e na minha opinião os pratos de peixe são mesmo isso e essa é a minha opinião e eu nunca vou mudar e vou ser sempre assim!
Mesmo com tudo isso, esses altos, esses baixos, não são nunca o suficientes e por isso ele permanece esfaimado, completamente sedento e esfomeado! É mais ou menos nessa altura que algo acontece, algo de realmente profundo, chega o prato principal, a carne!
E de repente tudo muda, o prato, os talheres, o vinho, tudo se torna diferente! A carne acaba sempre, mas sempre, por ser um prato requintado, por mais rudimentar que seja a apresentação, por mais básico que seja a preparação ou o acompanhamento, é sempre algo que requer o nosso mais apurado paladar, temos de ter bom gosto nessa altura, temos de ter um estômago á altura também! No prato principal é quando provamos as coisas mais importantes, temos o primeiro olhar para os nossos pais como pessoas “normais”, que também eles têm dúvidas, que também eles falham e muito, deve dizer-se que falham tanto, que até se assemelham connosco, que também eles deambulam por aí, em busca das respostas. É impressionante como eles, mesmo sendo mais velhos ainda erram, e tanto! Acaba por nos reedificar esse momento, nesse momento em que percebemos que não existem super-heróis, quando nada é tão preto ou tão branco! Temos o momento em que tudo o que de nós existe se esgota, somos deparados com o pior do mundo, a primeira traição, o primeiro amigo que fica para trás, aquela mulher\homem que amamos como se só ela\e existisse e ele nos parte o coração, não contente com isso, volta para trás e esmigalha-o, torna a voltar e queima-o, regressa e varre as cinzas que dele restaram e arruma num saco que lança numa lixeira! Mas nem tudo é mau, em metáfora culinária, é somente aquele bife com muito nervo que após delicados cortes e refinado temperar se transforma num apetitosíssimo festim! Descobrimos as verdadeiras amizades, ficamos a saber que não existe maior amor do que o amor próprio e acima de tudo, ficamos a saber que existem pessoas para as quais somos muito importantes e que temos personalidades em torno de nós que confiam nas nossas capacidades e que nos impelem a chegar mais e mais longe!
Percebemos então, que somos mais que apenas um, somos um todo e isso é extraordinário no prato de carne, isso satisfaz-nos de sobremaneira.
Eis que chega a melhor parte, a sobremesa, pena que seja sempre servida em pequenas porções! Mesmo assim, a frescura de uma peça de fruta, a pureza das coisas simples, ou o charme de algo mais elaborado, como uma mousse de chocolate que tem o exacto sabor daquela que a nossa mãe nos fazia nos tempos de Super-Mulher. Então não pedimos mais nada, não precisamos de mais nada, relativizamos imenso as coisas, aquilo que parecia ter tanta relevância ainda à uns dias atrás, pois agora os anos passam ao sabor de dias, deixa de ter tanta importância, ficamos mais satisfeitos com coisas básicas, aquele abraço, aquele dia á noite em que adormecemos a ver algo insignificante, mas que de algum modo nos remeteu a outros dias e por isso nos alegrou como nunca nada antes tinha alegrado. Por incrível que pareça, nem mesmo aqueles momentos mais tristes e principalmente nostálgicos nos afectam tanto como deveriam, o estômago está bem forrado e a sobremesa apenas deixa um sabor mais doce na boca, não faz muita diferença no corpo, porque ele, mais do que nunca encontra-se saciado, está cheio de sabores e gostos e memórias e aromas que têm tanto de indecifráveis aos outros como de inacreditáveis para o nosso próprio palato ou olfacto. Na sobremesa aprendemos, finalmente, a esquecer e isso é o mais importante, não podemos estar constantemente a ruminar naquilo que foi ou deixou de ser, não tem jeito, temos mesmo de digerir tudo, as entradas, o peixe, a carne, temos somente de apreciar, degustar!
Eis que chega o final da ceia, o corpo, outrora faminto, pede mais, mas pede algo diferente desta vez, algo de que não precisaria se ele fosse para casa descansar em paz depois de tal repasto. O corpo, nessa ceia imensa que é a vida, pede-nos algo que o mantenha desperto, se não for para apreciar a refeição, que seja só para não estar sozinho, pois escusado será dizer-se que uma ceia destas não se faz sozinha, temos de acompanhar esta ceia com amigos, amores, família q.b.! Então, o nosso corpo pede o café, aquele pedido estranho que não é bom, pois, como diz um amigo meu, “algo que é seco, triturado ao ponto de se transformar em pó, fervido em água e que no final disso tudo ainda tem de ser misturado com açúcar para ser minimamente tragável”, não pode ser bom! Mesmo assim, tomamos o café, na esperança que possamos apreciar mais um pouco de tudo aquilo que nos fez estar tão activos durante tanto tempo, que agora nos parece não ter sido tempo suficiente, nunca nos parece tempo suficiente.
Por isso mesmo, o corpo, agora saciado, mas com uma nova fome, uma fome de tempo, de sempre mais e mais tempo, retira-se, o corpo esvai-se, larga a sua forma temporal e palpável e viaja para outro qualquer lugar, um lugar onde a ceia é interminável, onde jamais é necessário café para continuar, onde podemos comer só uma sopa, ou só sobremesas, ou só doces, não existe regra, não é mais um jogo, não é mais nada, é só algo!
Por tudo isso, o corpo despede-se das cartas que tem na mão, abandona o jogo e troca as fichas no balcão, parte para novos desafios. Lança-se agora na intemporalidade e por isso mesmo, os que o acompanharam devem sentir-se felizes, só pelo simples facto de saber que agora esse corpo está noutra, já não quer cá saber de entradas ou calamares com massa fresca polvilhados de coentros! Esse corpo está lá,” lá longe”, como dizia um dos meus melhores e mais sábios amigos!
Pena é que existam uns certos indivíduos cujo paladar é tão selecto que cedo demais abandonam o jogo, não nos permitindo tomar aquele café longo com o digestivo e o cigarro, aquele café sossegado após a tão afamada refeição, onde podemos colocar as notícias em dia, partilhar um pouco um do outro somente por um pouco mais de tempo.
No final é sempre isso, é sempre o tempo que mais esfaimado que o corpo vai-se regozijando com os mais belos petiscos levando-os para a companhia dele quando ele mais bem entende, só porque ele, o tempo, é o senhor de tudo, tudo o que foi, que é, ou será, pois passado, presente ou futuro, o tempo está, estará e esteve sempre lá!

Em homenagem a um excelente Gourmet, Jorge Vasques, que tal como o tempo, esteve, está e sempre estará connosco!


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Sendo muito honesto, obrigadinhos!