Abandonando o Berço.

Espero-me no acalmar da bravia sede e fome que investem sobre mim rasgos de melancolia. Submirjo por entre os abismos da minha própria cólera e fico perplexo com aquilo que tenho ainda a aprender. O caminho apresenta-se tão extenso, tão longínquo e esguio que os meus pés me doem já, mesmo antes de sair da cama. As vontades carnais que me consomem, o desejo, a pura e inapta vontade de consumir alimentam-se de mim e deixa-me assim, como estou agora mesmo, um esqueleto, desprovido de carnes e músculos e sangue e veias, só osso, branco, duro e recto!
Abro uma das mãos em ossada e olhando-a, preencho todo aquele vazio de real com imaginação, imagino as minhas veias, a minha carne e o meu músculo, imagino a minha pele, a camada que me protege de adversidades mundanas e desviantes. Imagino aquela camada de corpo pensante que criei, imagino-a e num ápice só, ela realiza-se, inundando o mundo da minha verdade e virtude. Eu sou, nada mais, nada menos do que aquilo que me imagino, única carga que não controlo, ou escolho, são estes ossos, que já aqui estavam antes de mim e que depois de mim ficarão para outro que os queira revestir com a sua carne. Ah! Meu corpo, Ai! Revida para com a vida, dá-lhe luta! Ah, despoleta em ti mesmo o senso de existência e permanece calmo quando o azulado se entreponha entre ti e o mundo; e preenche-te de cólera quando tudo estiver calmo! Reserva-te com antagonismos, vive entre os abismos e como tal, transforma-te, ganha outras formas e para que a queda não te atemorize, imagina-te ave, ou felino, ou folha caída de árvore, bem lá do alto, mas numa queda paciente, coerente e sábia.
Esquece o desprovido corpo em que te imaginaram, esse era só um embuste, coberto de falhas, envolto em miudezas que não te permitiam ser quem queres ser, que te recusavam o acto de agir, mesmo antes de pensares faze-lo. Ai! Sofre, sofre imenso, dedica-te ao sofrimento ao ponto de o sofrimento ser nada mais que uma palavra. Coloca ambos pés no chão, finca-os com leveza mas acompanhado de sagacidade no solo e assim sendo, caminha! Não deixes que tua cabeça, comandante de tudo isto, bem lá do topo se deixe toldar pelas alturas e pela vertigem se sinta ludibriada e com vontade de subir mais alto ela por si só, obriga-a a ficar-se bem chegada do corpo, subindo com os pés e com o restante conjunto ás alturas que almeja, só assim te serás pleno, tal como te imaginas! E imagina-te, nem por um momento te dediques ao acto de te adorares, imagina-te só, imagina-te sempre mais e melhor, quanto mais te imaginares, mais terás de te realizar, mais terás a conseguir, a executar! Executa, ah! Executa como poucos conseguem e muitos tentam, mas por favor faz-te! Por favor, só não te faças homem, não te transformes numa palavra, não te transformes num sonho! Isso seria o meu maior pesadelo, que a fim de tudo fosses só um sonho, só um homem! Transforma-te ao ponto de deixares de saber o que és e por tal teres de te procurar insistentemente, só assim te encontrarás mais! Como no sexo, lugar de imaginação, onde tudo se repete e sempre mais fundo e mais forte e mais rápido e quente e húmido e pérfido, repete-te tu também, ao ponto da petiz mort! Nessa morte, nesse momento de vácuo, aprecia a calma, o egoísmo dessa calma e o desassossego de se permanecer somente aí, onde nada se imagina e tudo é real! O prazer é real, o cansaço é real, a loucura é real, tudo é real e ao mesmo tempo, fruto da tua imaginação! Ai! Transpira desse teu corpo toda a calma, transparece dessas tuas veias o nervosismo e imagina-te imperfeito, imaturo e ruminado, cuspido pela vaca que te pariu novamente, imagina-te de novo no berço e com todo o caminho de fronte a ti uma vez mais! Nesse momento, no momento em que tudo se afigura como uma repetição dura, rude, assustadora e exasperante, imagina um sorriso no rosto, um rubor nas faces e acima de tudo, imagina que tens vontade de repetir tudo de novo, imaginar tudo do zero uma vez mais! Aí ri-te, do tempo, do corpo e dos ossos, especialmente ri-te dos ossos, que se mantêm rectos, brancos e duros, ri-te deles, pois é de mau trato que te rias da pele negra, essa pele que agora envergas, pisada pela queda do segundo parto. Ri-te do mundo, de tudo a que à tua volta se encontra, faz-me o favor e ri-te só, não me questiones, quando te rires vais ver o proveito de te teres imaginado como querias e de mesmo assim seres forçado a reconhecer que não te imaginaste ainda o suficiente e que por isso é que tens de tentar novamente e possivelmente uma vez mais ainda, tantas até deixares de achar graça a esse lugar que é o fosso, o fim.

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