Reinventado.




Nessa manhã, apetecia-me espairecer, sim, apetecia-me soltar-me e ir… só ir, assim, sem mais nem porquê, partir…
Fui então! Seguido por dois tristes cães, aí fui eu. O rosto esboçava aventura a cada gota de orvalho matutino que escorria sobre ele. Os pássaros, ainda não tinham parado de voar desde o momento em que se tinham posto em busca de alimento. As pessoas, essas, cada uma delas que me cumprimentava com aquele olhar de quem julga, mesmo com o olho remelado e ainda meio fechado da desordem e da anarquia da noite passada, me dava mais força para partir.
Algo tinha deixado marcas profundas na noite passada, algo me teria marcado para eu me sentir assim, observado e sempre sujo aos olhos dos outros. Percebi que a minha memória me ia escapando por entre os pensamentos que ia lembrando. Os cães lá continuavam, atrás de mim, sempre não mais que dois passos, atrás de mim. Eles pareciam lembrar-se do motivo que me levara até ali, eles pareciam saber o que me fazia partir…
Fui caminhando, entrei em vielas, subi ladeiras, entrei por sítios que pareciam alegra-se ao ver que não tinham sido esquecidos. Os lugares acolhiam-me, ao contrário das pessoas. Com eles estava em paz e eles comigo aprazavam-se e quase inalavam um fulgor meu, fulgor que os permitia a permanecerem esquecidos mais alguns momentos, apenas até ao tempo em que novamente eu os visitasse. Foi assim, fui seguindo, tentei recordar todos os sítios de que eles se encontravam vivos, já que a mim, nada me lembrava nada e me sentia só e findo! Recordo agora que algo que me seguia de bem perto tinha ficado para trás, apercebi-me nesse momento que estava verdadeiramente sozinho.
A primeira pausa teria então chegado. Não sei quanto tempo andei, ou sequer a distância, nem mesmo dos atalhos e caminhos entrecortados por onde teria passado me recordava. Lembro-me de ter dois vultos a seguir-me, mas já não estavam lá, algo que me perseguia ter-se-ia ido embora. Não me lembrava já das horas a que teria começado a andar, ou a razão pela qual me tinha posto a caminho de nenhures…
Sei que uma sensação de solidão se abateu por tudo aquilo que eu era naquele momento, senti-me só, exonerado por um mundo do qual não tinha nenhuma lembrança, renegado por algo que nem sabia o que era.
De repente os vultos pareciam voltar e abeiravam-se cada vez mais de mim, dois cães, rezingões mas amistosos, pachorrentos e extremamente preocupados. Só quando os chamei e eles se puderam chegar a mim é que senti a calma dos seus olhos ao ver que comigo estava tudo bem. Parecia-me que eles me conheciam, pareceu-me que eles tinham visto um eu que eu, ou não lembrava, ou que queria a todo o custo esquecer.
A noite já teria chegado, tinha-se sentado a meu lado e tinha começado a falar comigo. Toda a sua escuridão permitia-me a ficar em paz, naquele breu onde não mais que quatro olhos se vislumbravam, deitei-me e dormi… dormi só! Apenas o sono me acalmou, lembro-me apenas disso! Lembro-me que aquele momento pareceu um segundo, lembro-me que pareceu apenas um abrir e fechar de olhos extenuados por todo aquele cansaço de tentar lembrar!
Era manhã, uma manhã cansada, uma manhã que ainda se apoiava na noite, via-se ainda a noite ali, prestes a levantar-se do lugar onde se teria sentado a meu lado momentos antes. Parecia-me que ela não se queria embora, pelo menos eu não queria que ela fosse, queria-a ali, a meu lado. A noite protegia-me!
Ela partiu, lembrei-me que algo teria também partido na minha vida para que eu ali estivesse, sozinho, no “algum lugar que ninguém quer conhecer” naquela condição estranha de quem está só por mote próprio. Erra quem pensa que eu estava triste, erra sempre quem me julga, ou pelo menos errava. Já não sentia um “julgamento” faz tempo… a barba ter-me-ia crescido naquele compasso de espera entre o momento em que teria partido e no momento em que me teria apercebido que partira… não tinha sido uma noite, foram várias, várias noites que umas ás outras, sempre tentando proteger-me, se revezavam permitindo-me á paz de parar um segundo para esquecer-me da vontade de lembrar!
Os cães, rio-me sempre que os penso ali a meu lado, o que a mente nos obriga para que nos sintamos menos histriónicos na nossa desenfreada vontade de sofrer dia após dia. Eles nunca teriam existido não fosse a minha propensão á imaginação e á vontade de os não deixar esquecidos…
Pouco e pouco as coisas foram tomando seu lugar, o sol foi para seu posto, as nuvens permitiram-lhe ver-me todo esse dia, sei que nenhuma ousou sequer impedi-lo de me observar, parecia-me que o sol queria fazer-me frente, forçando-me a paragem durante o dia, para que eu estivesse susceptível ao julgamento de outrem que por ali, pelos meus caminhos, se fosse perdendo também.
Os cães teriam já desistido de me acompanhar faz tempo, estava cansado de os alimentar com o meu ar calmo de quem sabe, exactamente, o que está a fazer.
Eu desisti de tudo… Apercebi-me nesse segundo, naquele minuto em que a noite acordava já para se vir sentar a meu lado, tentando proteger-me mais uma noite, que não precisava de protecção, pelo menos não daquele tipo. Não queria mais proteger-me esquecendo, queria fortalecer-me lembrando, lembrar é sempre o melhor remédio, “lembrar e construir é sempre o melhor remédio”, recordava eu a mim próprio.
Não sei como, mas tinha sufocado o meu próprio ímpeto á imaginação e isso não poderia nunca ter acontecido! Tinha de voltar, aliás, tinha de me lembrar do sitio de onde parti, para que a ele voltasse…

Foi esse o meu desafio naquela manhã, naquela manhã que agora lembro, naquela manhã onde parti… Eu teria partido para conseguir revitalizar-me e reinventar-me, eu teria partido, única e exclusivamente para voltar!
Não me esqueço nunca desta lição que me ensinei, desistir, só os fortes conseguem, só eles conseguem ter a força suficiente para não voltarem atrás na decisão e permanecerem na desistência, o fraco, esse acaba sempre por voltar a tentar. O fraco, volta sempre atrás pois fraqueja na ambição de se despojar do que a tanto custo construiu… Percebi que sou fraco e que por isso tento sempre!

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